quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Boca, Coração e Repertórios Comportamentais

Por: Bruno Alvarenga Ribeiro.

No evangelho de Mateus 12:34, é atribuída a Jesus uma frase que sintetiza alguns princípios muito importantes para o entendimento do comportamento humano: "(...) a boca fala daquilo que o coração está cheio". Os princípios aos quais nos referimos são teoricamente sintetizados por aquilo que chamamos de contingências de reforço. Não vamos nos deter sobre a definição do que seriam as contingências de reforço. Existe um outro texto postado neste blog que se encarrega desta tarefa: "Há algo mais profundo que as contingências de reforço?"

Propomos uma tradução comportamental para a frase de Jesus: "nos comportamos com os comportamentos que fazem parte de nossos repertórios". Numa linguagem mais leiga e menos técnica, diríamos que agimos de acordo com aquilo que somos, com aquilo que aprendemos ao longo de nossa história de vida. Ao vivermos nossa história, ao experimentarmos diferentes experiências, nossos comportamentos vão sendo modelados pelas contingências de reforço aos quais vamos sendo expostos. Isso significa que estas contingências têm uma ação seletiva.

Esta ação é válida para os três níveis de determinação do comportamento: filogênese, ontogênese e sociogênese. Na filogenia os comportamentos que aumentaram as chances de adaptação da espécie foram selecionados por causa do seu valor de sobrevivência. Estão incluídos entre estes comportamentos os padrões fixos de ação e os comportamentos respondentes. Saiba mais sobre os comportamentos respondentes clicando aqui. Na ontogênese são selecionados os comportamentos que preparam o homem para viver num ambiente em constante mutação. Neste nível de determinação estão os comportamentos operantes. Saiba mais sobre eles clicando aqui. E na sociogênese ou cultura, são selecionados os comportamentos que beneficiam a sobrevivência de grupos e instituições. A sociogênese inclui uma categoria de comportamentos que chamamos de comportamentos verbais.

Sem entrar no mérito da definição de comportamento verbal, que é complexa e gastaria um post unicamente para ela, o que podemos dizer é que o homem é um ser de linguagem. O homem fala. O homem possui comportamento verbal. Parece que Jesus está se referindo a esta categoria de comportamentos, ou seja, ele indica que provavelmente está fazendo referência aos comportamentos verbais. Ele parece querer assinalar que se o homem fala de amor, é porque o amor tem lugar em sua vida. Se ele fala de ódio, é porque o ódio é uma experiência marcante em sua história.

No entanto, alguém pode falar de amor, mas viver como se não soubesse o que é o amor. Os psicólogos rogerianos, também conhecidos como humanistas, chamariam isso de incongruência. É uma boa adjetivação! Incongruência é o mesmo que incoerência. Os analistas do comportamento falariam da não correspondência entre comportamento verbal e comportamento não-verbal. Grosseiramente seria o mesmo que falar uma coisa e fazer outra. Mas tecnicamente não é bem assim... Deixemos o tecnicamente para uma outra. Por enquanto nos contentemos com uma explicação mais superficial. Nos tempos de Jesus os fariseus eram os mestres da incongruência. Pregavam uma coisa e viviam outra. Nos tempos de hoje temos muitos fariseus por aí, como, por exemplo, os Malafaias da vida. Pregam o amor e se opõem ao reconhecimento dos direitos de algumas minorias... Melhor nem comentar!

Os fariseus analisados a partir da ótica da frase de Jesus - e aqui vamos abrir um parêntese para dizer que a análise também se estende aos fariseus dos tempos de hoje, principalmente àqueles que levantam muitas bandeiras como a do amor ao próximo e a da igualdade de acesso aos bens da cultura e sociedade, mas que na vida privada se comportam de modo a contrariar o que defendem -, seriam, então, categorizados como incongruentes, ou hipócritas, caso utilizemos as palavras do próprio Jesus. Na verdade, estão se comportando com os comportamentos que têm em seus repertórios, comportamentos selecionados pelas contingências de reforço que figuraram em suas histórias de vida. Isso é em essência  falar o que existe no coração, ou seja, comportar-se com os comportamentos que se tem.

Então, se alguém fala de amor, mas pratica o ódio, isso quer dizer que os comportamentos de praticar o ódio são muito mais reforçadores. Mas é preciso estender a compreensão do que entendemos como expressões do comportamento verbal. Comportamentos verbais não são expressos apenas pelo falar. Não falamos apenas com a boca. Alguém pode falar através de uma risada ou mesmo um olhar irônico. A vantagem de não falar com a boca, como, por exemplo, falar com olhares e expressões, é que não se sabe ao certo o que os olhares e expressões querem dizer, ou seja, não se sabe ao certo a função exercida por esses comportamentos. Assim, o falante se esquiva de possíveis punições, pois ninguém poderá alegar que a função exercida pelos olhares e expressões irônicas é a de exercer controle coercitivo. Vejam, portanto, a maleabilidade do comportamento verbal.

Topograficamente um comportamento pode ser apenas uma risada, mas funcionalmente ele pode ser uma ironia. Em sua forma ele é uma risada, algo que deveria produzir reforçamento positivo, mas em sua função ele exerce controle coercitivo. Está aí a plasticidade do comportamento operante, em especial a plasticidade do comportamento verbal. Jesus denuncia esta plasticidade utilizada, sobretudo, para o exercício do controle coercitivo, ou seja, para punir ou ameaçar de punições. Não deveríamos nos perguntar se a denúncia de Jesus não continua atual? Não deveríamos nos perguntar sobre o que estamos falando e o que o conteúdo do que expressamos denuncia sobre o que está em nossos corações? Comportamentalmente falando, não deveríamos olhar para os nossos comportamentos e a partir deles analisarmos o que revelam sobre nossos repertórios comportamentais e sobre as contingências que fazem suas manutenções? São contingências que mantêm comportamentos que exercem controle coercitivo ou são contingências que mantêm comportamentos que promovem o bem estar daqueles com quem convivemos?

Fica aí a pergunta para que todos façamos uma reflexão sobre nós mesmos e sobre o mundo que estamos construindo com os nossos comportamentos. Esse mundo é menos ou mais habitável? A longo prazo ele contribuirá ou não para a sobrevivência da espécie?

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