segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Há algo mais profundo que as contingências de reforço?

Por: Bruno Alvarenga Ribeiro.

Psicologia profunda é somente aquela que cuida da mente inconsciente? Muitas vezes o termo profundidade é quase sinônimo de vida mental, ou ao menos aponta para a possibilidade de existência de uma vida mental, de uma mente que funciona apesar de todo ato de volição. Isso faz com que a psicologia fique dividida entre as psicologias profundas, aquelas que cuidam da vida mental, em especial se debruçam sobre a tarefa de desvendar os segredos do inconsciente, e as psicologias superficiais, aquelas que tratam o comportamento apenas como respostas que surgem como ações provocadas por estímulos. Nada mais enganoso!

O mentalismo é mesmo encantador. Ele abre-nos a possibilidade de uma hermenêutica sem fim, fazendo acreditar que ciência se constrói com retórica. Retórica como a arte de falar não define aquilo que o cientista faz. O cientista trabalha com previsão e controle, e isso significa que deve ser capaz de isolar as variáveis responsáveis pelo comportamento de seu objeto de estudos. Não há nada mais trabalhoso e "profundo" do que selecionar as variáveis relevantes para a explicação do comportamento de um determinado de objeto de estudos, principalmente quando este objeto é o comportamento humano.

O problema com o mentalismo é que ele não deixa claro quais são as variáveis relevantes para se ter um mínimo de controle e previsão sobre o comportar-se. Se estas variáveis são o id, o ego e o superego, não temos como alterá-las, uma vez que são inacessíveis a qualquer tentativa de manipulação direta. Objetariam os mentalistas dizendo que estas podem ser acessadas indiretamente via comportamento. Então, temos aqui um problema. Se o objeto de estudos, no caso o comportamento, é a única evidência sobre as variáveis que o produzem, não há possibilidades reais de serem testadas mudanças significativas neste objeto, já que a rigor é inviável provar que as mudanças apontadas estão relacionada a alteração em certas variáveis. Em outras palavras, qualquer relação de causalidade não pode ser estabelecida, o que abre campo para a pura especulação.

O problema se agrava quando se hipotetiza sobre as variáveis causadoras do comportamento, especulando que estas têm um comportamento muito próprio. Isso vai tornando cada vez mais problemático o estudo, pois não são mencionadas que outras variáveis são responsáveis pelo comportamento daquelas variáveis que são diretamente responsáveis pelo comportar-se. As variáveis responsáveis pelo comportar-se precisam ter o seu comportamento explicado, e ao se explicar o comportamento destas, perde-se o foco do comportamento em si. Desta forma, toda explicação mentalista tende a ser circular. O comportamento é a única evidência das causas que o provocam, e as causas precisam ter o seu comportamento explicado para que se possa acreditar que o comportamento em si é uma evidência contundente daquilo que o causa. No fim das contas o comportamento é a explicação para si mesmo.

As contingências de reforço fornecem-nos uma saída mais interessante, pois indicam qual é o objeto a ser estudado e quais são as variáveis responsáveis pela forma como esse objeto se apresenta. Na Análise do Comportamento as contingências de reforço constituem a unidade básica de análise. Elas indicam a princípio que pelo menos dois processos são responsáveis pela ocorrência do comportamento: o reforçamento e o controle por estímulos. Para melhor compreensão destes processos é sugerida a leitura do texto "Condicionamento operante: definição e aplicações."

O reforçamento faz referência às operações de consequenciação. Trocando em miúdos, o comportamento é afetado por suas consequências, que podem ser de dois tipos: reforçamento positivo e negativo. A princípio parece ser um modelo explicativo bastante simples. Mas não é como parece. As consequências afetam o comportamento de diferentes formas. Elas vão depender, por exemplo, dos esquemas que determinam a forma como elas são apresentadas, e aqui entramos no terreno dos esquemas de reforçamento. O leitor vai entender melhor os esquemas de reforçamento lendo outro texto deste blog: "Jogos de azar: uma breve reflexão sobre os esquemas de reforçamento." O esquema de reforçamento vai ser determinante para que as consequências produzam comportamentos mais ou menos resistentes à extinção, comportamentos mais ou menos frequentes, comportamentos mais ou menos vigorosos.

O número de consequências que podem afetar os comportamentos que constituem nosso repertório total de comportamentos são incontáveis. Algumas consequências podem ter maior poder de controle sobre o comportamento se forem biologicamente importantes: sexo, bebidas, comidas etc. A importância biológica vai ser determinada pela história filogenética da espécie a qual o organismo pertence. Então, o ambientalismo como modelo explicativo não está contido em si mesmo, pois depende de outros níveis de explicação. A adoção do modelo de causalidade ambientalista remete-nos a um diálogo fecundo com outras ciências que explicam como funcionam o substrato biológico que dá amparo ao comportar-se. Neste sentindo, uma psicologia contida em si mesma é um projeto estéril desde a sua concepção. Não se faz análise do comportamento sem considerar variáveis ambientais e também variáveis biológicas.

O número de consequências que afetam o comportar-se aumenta exponencialmente se considerarmos que variáveis previamente neutras quando associadas a outras variáveis que já afetam o comportar-se, passam a adquirir poder de controle sobre este. Neste rol entram aquelas variáveis que foram associadas às consequências de importância biológica. Estas novas variáveis podem se associar a outras, gerando, assim, novas variáveis controladoras do comportamento. Há um infinito de possibilidades de associações entre variáveis ambientais e comportamentais, o que demonstra o quão "profundas" são as contingências de reforço.

Até aqui estivemos considerando somente as operações de reforçamento. Há as operações de controle de estímulos, o que é outra forma de dizer que não somente as consequências afetam o comportar-se, mas também os contextos em que os comportamentos ocorrem. Nestes contextos estão estímulos que assumem o controle do comportamento depois de serem associados às consequências. Após esta associação estes estímulos adquirem a função de sinalizadores de consequências, aumentando ou diminuindo a probabilidade dos comportamentos que controlam. No texto "O Condicionamento operante: definição e aplicações" o leitor vai encontrar uma explicação mais detalhada sobre como os contextos assumem o controle do comportar-se.

O número de variáveis dos contextos que afetam o comportar-se é ampliado se considerarmos que outras variáveis parecidas àquelas que controlam as emissões do comportamento, adquirem também a função de diminuir ou aumentar suas probabilidades de ocorrência. Por sua vez, o poder de controle destas variáveis sobre o comportar-se vai depender dos esquemas de reforçamento, ou seja, vai depender da forma como as consequências ocorrem. As combinações entre variáveis do contexto e as operações de consequenciação podem ser as mais diversas possíveis, o que revela o caráter multideterminado do comportamento, ao mesmo tempo que revela a complexidade deste objeto de estudos. Sobretudo, revela quão "profunda" são as contingências de reforço.

A coisa piora se ainda considerarmos que as contingências dos comportamentos individuais podem se entrelaçar com as contingências culturais. Por sua vez a cultura acaba estabelecendo regras para as condutas individuais, regras que afetam o comportamento de pessoas e grupos. O resultado final do comportamento de pessoas, grupos e instituições é a manutenção ou mudança de padrões culturalmente estabelecidos, e tais padrões podem ser determinantes para a sobrevivência da humanidade e de seu modo de existir. E aqui se revela a necessidade de diálogo da Análise do Comportamento com as Ciências da Sociedade, por mais que estas tenham a tendência em descrever as culturas em termos topográficos ou apelarem para descrições mentalistas no afã de explicar os comportamentos das coletividades.

De tudo isso fica uma constatação: as contingências de reforço são muito mais profundas do que qualquer modelo de causalidade mentalista. Enquanto unidade de análise as contingências do reforço permitem uma visualização das variáveis determinantes para a ocorrência do comportar-se, e da complexidade que envolvem a sua emissão. Sobretudo, elas permitem a construção de uma empreitada científica que abre margens para o controle e previsão. Por sua vez esta empreitada as transforma em um instrumento não somente de análise, mas também numa poderosa ferramenta de intervenção. Então, porque as contingências do reforço não haveriam de ser profundas?



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