sexta-feira, 8 de março de 2013

Comissão de Direitos (Des)Humanos?

Por: Bruno Alvarenga Ribeiro.

Nesta quinta-feira dia 07 de março de 2013 a política brasileira viveu mais um de seus episódios marcados por uma terrível contradição. Um pastor que já fez declarações contra negros e homossexuais foi eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados Federais. O pastor Marco Feliciano já chegou a declarar que os africanos são descendentes amaldiçoados de Noé, e que a AIDS é o câncer gay.

Num dos episódios mais recentes foi filmado em sua igreja pedindo a senha de um cartão de crédito de um fiel. O fiel ofertara à Igreja seu cartão de crédito, mas não disponibilizou a senha. De frente toda a assembleia o pastor mencionou que não adiantava oferecer o cartão e não disponibilizar a senha. Chegou a dizer que assim a graça de Deus não aconteceria. O pastor leva a assembleia a acreditar que os bens espirituais estão condicionados às ofertas que fazem para a igreja. Que fiel não quer receber as graças de Deus? Para receberem realizam suas ofertas... Tratei deste assunto num texto intitulado "Teologia da Prosperidade: contingências que conquistam fiéis".

A pergunta que deve ser feita é se o pastor possui as credenciais para assumir uma comissão tão importante? Comecemos pelo esclarecimento do que faz a Comissão de Direitos Humanos. Basicamente é uma comissão que tem a função de defender os direitos de parcelas da população vitimizadas por discriminações, de pessoas que com dificuldades acessam os serviços essenciais para terem uma vida digna.

As declarações do pastor se incompatibilizam com a função da comissão. Assuntos tão complexos e delicados como a orientação sexual e diferenças étnicas não podem ser tratados de um ponto de vista teológico. Teologia não é ciência. A teologia enquanto campo do saber se constitui como um discurso filosófico moralizante, discurso que julga a realidade não com base em fatos, mas sim com base em orientações religiosas.

Temas como orientação sexual e diferenças étnicas devem ser tratados tecnicamente, devem ser tratados a partir de dados produzidos pelo saber científico. E a ciência tem muito a nos dizer a respeito de temas tão delicados. Sobre as diferenças étnicas, por exemplo, a ciência tem demonstrado que as diferenças entre o DNA de negros e brancos é mínima. De um ponto de vista genético o termo "raça" não faz sentido. O termo é muito mais uma categoria política do que um conceito científico.

Sendo assim, negros não poderiam nunca serem considerados descendentes amaldiçoados de Noé. Primeiro porque a história do dilúvio é uma ficção bíblica. Os escolados em exegese, que é o estudo e interpretação dos textos bíblicos, sabem que o texto sobre o dilúvio é um ensinamento sobre os frutos que poderiam ser produzidos pelo pecado. Ninguém que trate seriamente os textos bíblicos, inclusive os exegetas sérios, acredita que o dilúvio tenha sido um fato natural, tenha ocorrido realmente.

Noé é apenas um personagem bíblico e possivelmente a sua existência seja apenas uma ficção, um personagem criado para ensinar algo sobre a doutrina a respeito do pecado e suas consequências. Não há linhagem de Noé sobre a Terra. Não há linhagem abençoada e muito menos linhagem amaldiçoada. Esse tipo de fundamentalistmo bíblico é muito perigoso, pois pode produzir muitas distorções na interpretação de questões importantes, questões como a que envolve a discussão sobre direitos humanos de populações vitimizadas por discriminações. 

Recomendo a leitura de uma pequena reportagem da BBC Brasil sobre a questão que envolve as diferenças entre as raças: "Genética alimenta polêmica sobre 'raças' no Brasil". A reportagem apresenta uma discussão muito interessante sobre os usos políticos do conceito de raça no Brasil. Os usos políticos tem suas funcionalidades ao criarem condições para que os negros tenham maiores chances de acessarem serviços que lhes foram negados durante séculos. Neste sentido é compreensível falar em raças, mas somente neste sentido, pois biologicamente a questão não faz sentido algum. Portanto, negros não são descendentes almadiçoados de Noé.

Sobre a homossexualidade o que sabemos de um ponto de vista científico é que a capacidade de amar e respeitar não dependem da orientação sexual. Sendo assim, homossexuais têm a mesma capacidade de darem e receberem amor que tem um heterossexual. São tão capazes de respeitarem os seus semelhantes quanto um heterossexual. O exercício da afetividade não tem ligação causal com a orientação sexual, ou seja, a orientação sexual não condiciona as capacidades de amar e respeitar.

Dizer que a AIDS é o câncer gay é pensar de uma forma muito limitada a realidade, é demonstrar que não se sabe nada sobre como são os mecanismos de transmissão das doenças sexualmente transmissíveis. Pensando assim o pastor demonstra que sua atitude está condicionada pela falácia dos grupos de riscos. Não há grupos de riscos, e sim comportamentos de riscos, comportamentos que podem ocorrer tanto entre homossexuais quanto entre heterossexuais. Acreditar que há grupos de riscos é pensar que homossexuais são promíscuos por natureza e que por isso têm a maior propensão para se infectarem com doenças sexualmente transmissíveis. Este tipo de pensamento além de não ter bases científicas, é também preconceituoso.

Para terminar eu diria que a eleição do pastor é reveladora sobre a forma de se fazer política no Brasil. No Brasil os critérios técnicos são deixados de lado. O que prevalece são as trocas de favores e as permutas de influências. É legítimo o desejo do pastor e da bancada envangélica a respeito da defesa da família, desde que isso não implique em uma cruzada étnica ou contra outros grupos que socialmente são vítimas de diferentes tipos de discriminações. Portanto, a preocupação deste texto reflete a essência do seu título: a comissão de direitos humanos continuará em defesa destes direitos, ou de agora em diante vai em busca dos direitos desumanos? O tracadilho parece engraçado, mas deve ser levado a sério!

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