segunda-feira, 26 de março de 2012

Diagnóstico: "uma faca de dois gumes"

Por: Bruno Alvarenga Ribeiro

O diagnóstico em Psicologia Clínica pode ser uma faca de dois gumes. Se por um lado ele pode servir como uma diretriz para o tratamento e como meio para comunicação com outros profissionais da área da saúde, ele pode por outro lado atuar como uma camisa de força, como algo que engessa as ações do psicólogo, no sentido de não fazê-lo enxergar as contingências responsáveis pela ocorrência daqueles comportamentos, que geram todo o desconforto traduzido na queixa do cliente.


Cliente? Isso mesmo. Vou preferir usar o termo cliente em detrimento do termo “paciente”. Paciente tem uma forte conotação médica, por isso pressupõe que aquele que espera pacientemente pela cura esteja apresentando algum tipo de doença, e se não estivesse doente não esperaria pacientemente numa sala de espera pelo antedimento ou pelo reestabelecimento da saúde ao longo de todo o tempo em que durar o tratamento. Paciente tem outra conotação que muito me incomoda. Dá a entender que quem busca a cura recebe passivamente as orientações do profissional da saúde, tendo como único dever observá-las e colocá-las em prática.



Já o termo cliente pressupõe uma relação profissional em que ambos os pólos desta relação assumem uma postura ativa, postura determinante para que possa ocorrer a recuperação. O cliente tem também uma postura ativa no processo psicoterápico na medida em que ele é o próprio agente de mudança de sua vida, sendo, portanto, responsável pela alteração das contingências de reforço que produzem os seus comportamentos. Logicamente que tudo isso se torna possível porque o processo psicoterápico permite-o tornar-se consciente destas contingências, conhecimento que possibilita o planejamento de meios para alterá-las. Este planejamento sempre é feito em parceria com o profissional.

A base de todo este planejamento é o diagnóstico. O diagnóstico é como uma bússola. A bússola tem a função de orientar. Esta também é a função do diagnóstico, ou seja, ele orienta as ações que deverão ser tomadas, tornando possível a alteração das contingências responsáveis pelos comportamentos que produzem todo o desconforto traduzido na queixa do cliente.


Entretanto, o próprio termo “diagnóstico” está impregnado de um sentido médico bastante pernicioso à Psicologia. Pernicioso porque pressupõe a existência de uma doença, de uma patologia de origem mental. Nesta perspectiva a queixa seria a tradução em palavras dos comportamentos que sinalizam a existência da patologia. Estes comportamentos atuariam como sinais indicativos de que algo no mundo mental não vai bem, de que alguma coisa está em desordem, por isso são chamados de sintomas.


No entanto, nem a pessoa que se queixa sabe que seus comportamentos são sintomas que revelam algo que se passa em um mundo obscuro da mente. Podemos ver claramente neste exemplo os reflexos da adoção do modelo médico pela psicologia, modelo que divide o mundo em normal e patológico. Disto resultam esforços na tentativa de se construir uma psicopatologia, uma classificação das doenças mentais e da forma como elas se apresentam através de seus sintomas. Todo este esforço acaba produzindo rótulos diagnósticos, que se por um lado podem facilitar o diálogo entre profissionais da saúde, podem por outro lado obscurecer as contingências responsáveis por aqueles comportamentos que geram todo o desconforto relatado pelo cliente.

Se o cliente não sabe a origem do desconforto é porque não aprendeu a identificar os comportamentos que produzem todo o mal estar sentido, como também não aprendeu analisar as contingências responsáveis por estes comportamentos. Em outras palavras, o desconforto não tem origem em alguma doença mental produzida por uma mente inconsciente e obscura, mas sim nas consequências produzidas pelos comportamentos. Por sua vez estes comportamentos são mantidos por certas contingências de reforço. Sendo assim a origem do desconforto está nas contingências e só quando elas forem modificadas, o desconforto e os comportamentos que o originam modem ser eliminados.

O problema dos rótulos diagnósticos é que eles descrevem somente a topografia (forma) dos comportamentos e não suas funções, até porque isso não seria possível, pois as funções devem ser encontradas nas relações que cada comportamento estabelece com as contingências responsáveis por sua ocorrência. Como cada organismo tem uma história de interação com o meio ao seu entorno, resulta deste pressuposto que as funções de cada comportamento devem ser encontradas na história de reforçamento do organismo.

Por topografia entendemos a forma assumida pelo comportamento, ou seja, suas manifestações públicas, observáveis. Imagine o seguinte relato: “João subiu correndo na árvore para fugir do cachorro”. A topografia se refere à forma como João subiu na árvore. Pode ter subido escalando-a ou usando uma escada. Se foi escalando-a ou usando uma escada pode não fazer muita diferença para a análise do comportamento em questão. Mas a função do comportamento, ou seja, seu sentido, sua intencionalidade, faz sim toda a diferença. João subiu para fugir do cachorro que o perseguia. Pode ser que no passado João conseguiu escapar de cachorros fazendo alguma coisa para deles se distanciar. Pode ter pulado um muro, pode ter se escondido, pode ter subido numa árvore etc. O subir na árvore faz parte daquele conjunto de comportamentos que permite escapar de cachorros, e entre estes estão não somente os comportamentos de subir em árvores. Todos estes comportamentos têm a mesma função, mas topografias diferentes. Aquele comportamento que permite escapar mais eficientemente, provavelmente será reforçado e se tornará mais forte. Mas a emissão deste comportamento dependerá do contexto. Dependerá, por exemplo, se existe ou não uma árvore que possa ser escalada, um lugar para se esconder, um muro para ser pulado etc. As respostas subir em árvore, se esconder e pular um muro, têm todas a mesma função, embora tenham topografias completamente distintas.


Uma análise da topografia do comportamento de João não revelaria a sua intencionalidade, ou seja, não revelaria a sua função. Mas uma análise das consequências que se seguem a este comportamento e dos contextos em que ele ocorre permitiria a identificação de sua função. Alguém desavisado que viu João correndo de cachorros algumas vezes, poderia dizer que ele tem fobias de cachorros. Fobia é um rótulo diagnóstico, e como todo rótulo diagnóstico padece do mal de ser apenas descritivo, de apenas descrever o comportamento em sua aparência (topografia).

Mas só a análise do comportamento de João poderia levar a conclusão se ele tem ou não fobia de cachorros. Para ter fobia de cachorros não bastaria fugir de cachorros. A temática “cachorro” teria que ser suficiente para trazer prejuízos funcionais para João, ou seja, para o funcionamento geral de João. De repente, João deixaria de fazer muitas coisas interessantes porque poderia encontrar com cachorros na rua. Poderia abdicar de momentos de prazeres por causa da possibilidade de encontrar com cachorros. João poderia se sacrificar para ir para o trabalho por causa de cachorros. Imaginemos que o trabalho de João é perto de sua casa. João poderia ir para o trabalho andando, mas para fugir da possibilidade de encontrar com cachorros ele vai de carro. Isso faz João ter um gasto adicional no fim do mês por causa do combustível consumido pelo veículo.

Este tipo de análise leva em conta a frequência do comportamento, sua intensidade quando da sua ocorrência, como também os seus efeitos. Isso chamamos de análise funcional do comportamento. A análise funcional é bem diferente da análise topográfica, pois não se limita aos aspectos públicos do comportamento, e nem pressupõe que estes aspectos públicos são sintomas de algo oculto, de alguma patologia mental. A análise funcional está mais interessada em desvendar as funções do comportamento, e isso é feito identificando as relações que o comportamento estabelece com o meio.

Nesta perspectiva não se fala em doença, pois o comportamento por mais disfuncional que seja, por mais que produza prejuízos para o funcionamento global do indivíduo, ele é um produto das contingências de reforço. Se faz algum sentido falar de “patologias” em psicologia, estas são “socialmente construídas”, ou seja, são produtos da história de interação do indivíduo com o mundo ao seu redor. Como é desnecessário e contraproducente falar em patologia, pois esta perspectiva gera confusões as mais diversas, é mais pragmático tentar entender que história é responsável pela ocorrência de um determinado comportamento, ainda que este acarrete em inúmeros prejuízos para o indivíduo que se comporta. Todo comportamento é comportamento selecionado pelas contingências de reforço. Mesmo os comportamentos mais disfuncionais são produtos da história de interação com o meio.

Sendo assim, rótulos diagnósticos podem não dizer muita coisa. No máximo descrevem a topografia de alguns comportamentos. Alguém que tem algumas manias não necessariamente “tem” Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC). Não é porque uma pessoa separa as roupas por cores nas gavetas que ela tem TOC. Este comportamento de separar por cores teria que ser analisado de acordo com o nível de interferência que pode causar no funcionamento global da pessoa. Para isso seria necessário identificar sua frequência e sua intensidade. E a partir destes parâmetros investigar se o separar por cores produz desconfortos emocionais que acarretem em prejuízos funcionais. Se a esta forma de se comportar estão associados comportamentos emocionais que interferem em outros comportamentos produtivos, privando desta forma a pessoa de reforçadores importantes, poderia se levantar a suspeita de rituais compulsivos e de comportamentos encobertos repetitivos (obsessões).


Obsessões e compulsões são termos que indicam no máximo que existem comportamentos que se repetem com frequência, sendo que obsessões se referem a comportamentos encobertos e compulsões a comportamentos públicos. Porque isso acontece e as consequências acarretadas pela repetição, é uma questão para ser analisada funcionalmente. Embora, topograficamente o comportamento de separar as roupas por cores possa sugerir o indício de uma compulsão, funcionalmente este comportamento pode apenas significar, que a separação por cores facilita a escolha das roupas na hora de se trocar ou facilita a realização de combinações de peças de cores diferentes. A topografia pode ser enganosa, por isso todo cuidado é pouco com os rótulos diagnósticos. Além do mais, o uso indiscriminado dos rótulos diagnósticos pode levar a uma patologização da vida cotidiana, o que levaria a um psicologismo sem medidas.


Portanto, o diagnóstico pode ser uma “faca de dois gumes” na medida em que obscurece as contingências responsáveis pelo comportar-se, mesmo que este comportar-se seja produtor de prejuízos funcionais os mais diversos, e na medida que contribui para uma patologização da vida cotidiana, criando assim a falsa impressão de que a Psicologia é a ciência que estuda o funcionamento mental e as patologias que acarretam em um mal funcionamento da mente.

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